segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Sem eira nem beira

Há um corredor imenso que entre as oito da manhã e as oito da noite se enche da multidão regurgitada e ao fim do dia engolida pelos autocarros nas paragens da Gare do Oriente. A multidão passa, ruidosa e apressada, como formigas com destino certo. Às dez da noite chegam os reais habitantes, acompanhados dos inseparáveis sacos e carrinhos com que percorrem as ruas diariamente, e esse mesmo corredor ganha outra vida, outro ruído, vozes que sussurram, falam baixo, falam para dentro.
Já passava das onze da noite quando passei pelo dormitório silencioso, desprovido de colchões e almofadas reais, mas improvisadas em pedaços de cartão ou caixas vazias, abandonadas por alguém, em algum lugar. Ninguém olhou ou parou o que fazia para me ver passar. Faz muito tempo que apesar de frequentarmos o mesmo espaço nos movemos em realidades diferentes, paralelas, conformados a uma mútua invisibilidade.
Mas nessas camas improvisadas, dentro dos sacos-cama mais ou menos gastos espalhados com uma lógica que me é alheia, estavam pessoas, iguais a mim, cuja sorte malvada – se tal coisa existisse – ou loucura indesejada – se alguma vez desejada o fosse – lhes tomaram conta da sina e ditaram um futuro que passa pelas ruas e termina diariamente na fria curvatura branca da estação de metro.
Sem querer ver mas a querer olhar, reparei numa mão pequena nas costas de um homem de camisola azul. Era um saco-cama “de casal”. Um casal que dormia num forçado aconchego, executando uma técnica perfeita de amparo nocturno em forma de abraço. Mais à frente, uma cabeça branca dentro de um pijama axadrezado, deixava-se ver num saco-cama que teria sido castanho ou amarelo-torrado. Respirava como quem dorme tranquilo e a sono solto sem preocupação alguma. No topo do seu carrinho de compras tinha a roupa do dia, encardida do uso mas dobrada com o esmero de roupa de festa. Seria a indumentária de eleição do próximo dia e de todos que se seguissem. Não há outra.
Sem-abrigo.
Os invisíveis que saltam aos olhos de quem não quer ver, que gritam aos ouvidos entupidos da cera egocêntrica que nos afasta e torna indiferente a seres humanos iguais a nós. Iguais a mim.
Sem eira nem beira.

“De acordo com os dados da Nações Unidas em 2005 havia 100 milhões de sem abrigo. Passados 9 anos ainda não temos números oficiais. Porém, há várias associações, organizações e igrejas que disponibilizam apoio, alimentação e abrigo; é fácil encontra-los online. Se puder ajudar, faça-o.” (texto das Nações Unidas)

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