quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Lição nº 3 - As mulheres não se medem aos palmos

Levantou-se para ir buscar outra tabela e sentou-se novamente. Continuou o trabalho com o ecógrafo, mediu de novo e voltou a olhar para a tabela.
"- Vai ter que nascer. Está com os parâmetro muito abaixo do normal. Não está a crescer. Estimo que o seu peso esteja entre as novecentas e as mil gramas".
Saí do consultório directamente para o hospital. Como?! Nascer?! Já?! Mas faltam três meses! Três meses!

Foi assim que comecei a tomar contacto com uma realidade que até então desconhecia. Os bebés são para nascer de 40 semanas, 38 vá… Estava de 27 semanas. Estávamos em Julho e a miúda era para nascer apenas em Outubro.

Fui internada de imediato. Não houve sequer tempo de fazer todas as injeções  recomendadas para a maturação dos pulmões da pequena. Nasceu de cesariana às 20h do dia em que completava 28 semanas de gestação. Tinha 875 gramas e eu não tinha nenhuma noção do que me esperava.

Quando a vi nem queria acreditar. Era muito mais magra e muito mais pequena do que eu alguma vez pudera imaginar. Fiquei imóvel, sem reação e pedi imediatamente para me tirarem dali. Durante 3 dias fui incapaz de voltar à unidade, achei que era impossível que ela sobrevivesse. Não queria vê-la e muito menos decorar a sua cara. Não fosse a paciência desmedida da Enfermeira Lina Real, teria demorado muito mais do que 3 dias até conseguir voltar a ver a pequena. Quando lá cheguei colocaram-na no meu peito, pele com pele, ao mesmo tempo que me falavam do Método Canguru enquanto as minhas lágrimas escorriam. Acho que naquele momento, no meio dos fios, dos barulhos, dos apitos das máquinas e das lágrimas comecei a acreditar naquele pingo de gente. “- Olhe que afoga a miúda” dizia a Enfermeira Lina.

Depois foi um dia de cada vez. Este foi aliás o primeiro ensinamento em todo este processo: aprender a viver um dia de cada vez. Para uma pessoa como eu habituada a fazer planos para tudo e mais alguma coisa, não foi fácil. Mas consegui. Dia a dia, grama a grama. O aumento de 5 gramas era festejado até à exaustão. Houve dias em que saí do hospital com a certeza que mais dia menos dia levaria a minha pequena para casa, mas também houve dias em que o desespero me parava até os movimentos. Chegou a pesar 712 gramas. Era literalmente um palmo de gente. Para se ter uma ideia, a cabeça da Margarida era mais pequena do que uma bola de ténis e o seu coração era do tamanho de uma moeda.  Inimaginável. Depois houve a hemorragia cerebral, o canal do coração que teimava em não fechar, a transfusão de sangue, etc., etc. mas a miúda lá ia ultrapassando tudo. Quando tudo parecia negro, ela lá dava a volta.

Ninguém está preparado para acolher um bebé que se apressou para nascer. Nem os pais, nem a família, nem os amigos. “- É pequenina? olha foi uma sorte! Custou pouco a nascer”; “- Pesa pouco? Não te preocupes, tem muito tempo para crescer e engordar cá fora.” Não é por mal, eu sei, é mesmo porque não temos a noção do que é um bebé tão pequeno. Eu também não tinha. E o irmão com seis anos? como é que lhe vou dizer que a irmã nasceu, quando eu própria não acredito que ela vá sobreviver? Demorei um mês para lhe dizer. Valeu-me estarmos no  Verão e levarem-no de férias para o Sul.

Durante o internamento da Margarida, recebi várias visitas de pais de meninos prematuros. A troca de experiências é muito importante, falamos a mesma língua, pertencemos ao mesmo grupo. Nunca esquecerei, por exemplo, os pais da Maria João, um casal alentejano que veio de propósito a Lisboa num dia de Agosto apenas para me dar alento. Ver a Maria João tão bonita e bem disposta ajudou-me a acreditar. Lição número dois: acreditar sempre. Mesmo quando tudo parece não dar certo.

Com um mês a Margarida recebeu a visita do irmão e tirei-lhe a primeira fotografia. Com dois meses e pouco levei-a finalmente para casa. Tinha 1.860 gramas. Era ainda muito pequenina aos olhos de todos, menos aos meus. Para mim já era uma matulona.

Hoje passados 12 anos a Margarida entrou para o sétimo ano. É uma miúda como todas as outras da sua idade, alegre e bem disposta, fala pelos cotovelos e adora cantar. Não consigo perceber como é que pude não acreditar na sua força desde a primeira vez que a vi. 


Lição número três: as mulheres, tal como os homens, não se medem aos palmos.


A fralda grande é a normal de recém-nascido, a outra é a fralda que a Margarida usava quando nasceu.


Fotografia tirada no Hospital dias antes de ir para casa.

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