quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Anónimo

O desalento que se vivia nas redacções era por demais evidente. Pela primeira vez desde há muito tempo, não havia uma notícia digna o suficiente para abrir o noticiário. Os directores de informação estavam por isso encurralados e teriam necessariamente de admitir que não haveria outra hipótese que não a de colocar uma notícia menor. A dúvida estaria entre o conflito Ucrânia-Rússia ou a epidemia do ébola. O valor da despesa pública seria no máximo noticiado após o intervalo. A probabilidade de uma reportagem sobre as PPP estava fora de questão. Nas redacções, nunca ninguém ninguém pensou que um dia se chegaria a este ponto, em que nada acontece de realmente importante para a vida dos portugueses. Existia até uma certa nostalgia sobre as manchetes incríveis dos últimos noticiários: "as sardinhas este ano estão mais gordas"; "escândalo no campeonato nacional de bisca dos nove"; "protesto em frente à loja da M&H por falta de leggings de cor cinza".

A denúncia anónima foi um verdadeiro rastilho de pólvora. Em menos de quinze minutos, já todos os meios de comunicação social se encontravam à porta da casa do grande banqueiro. Aquela notícia era um verdadeiro furo jornalístico e todos os noticiários estavam a postos para o directo. Às 20h01, diante das câmaras e microfones, a testemunha começou a falar: "Eu já cá trabalho vai para mais de vinte anos. Conheci inúmeras namoradas do Sr. Dr., mas esta de agora é da pele do diabo. Ela entrou aqui em casa e foi directa ao quarto dele. Ninguém a conseguiu segurar pois ela com aquele tamanho impõe o seu respeito. Começou a acusá-lo de tudo e mais alguma coisa: que ele tinha acabado com o chocolate branco, que deixou a cama por fazer, que não tinha visto o correio, etc. O Sr. Dr. ajoelhou-se e até lhe chegou a beijar os pés. Olhe, eu até chorei por ver o Sr. Dr. naquele estado. Ela então sai disparada cá para baixo para o escritório e nós fomos atrás dela. Mas não conseguimos chegar a tempo. Num instante ela tombou toda a colecção de mais de 500.000 soldadinhos de chumbo. O Sr. Dr. ficou inconsolável pois levava anos a erguer aqueles soldadinhos".

Deu-se o acaso, que nesse preciso momento, no outro lado da estrada, encontra-se uma gata siamesa a miar em cima de um plátano. Os jornalistas como já tinham o que queriam da testemunha, encaminham-se rapidamente para o plátano na tentativa de conseguir um exclusivo da gata. A testemunha, perturbada como estava, não se apercebe da debandada geral e continua o seu discurso: "Ele comprava um soldadinho por cada fraude e roubo que cometia. Eu tenho as provas de todos os crimes cometidos. O Sr. Dr. que me desculpe, mas para o bem dele estará mais protegido na prisão. Essa mulher ainda o mata, pois toda a gente sabe que o Sr. Dr. é diabético e que não pode comer chocolate branco."

Os jornalistas, após registado o drama da gata siamesa, regressam junto da testemunha para uma última questão: "- O Sr pode só dizer-nos o seu nome". A testemunha responde : "- Eu sou Anónimo Rodrigues Matias". 

Serão os anónimos assim tão anónimos quanto isso? Estou em crer que não...




  

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