sexta-feira, 26 de setembro de 2014

14 anos depois

Estou na segunda fila, sentada na secretária, a usar o esquadro e o compasso. O professor chama-me à secretária dele. Estamos na aula de Educação Visual do nono ano. Pergunta-me, assim do nada, que profissão gostaria de ter. Respondo a gaguejar, como quase sempre. 
"- Quero ssser jojornalista.
- Jornalista? Mas gaga não pode ser jornalista! A Joana tem capacidade para muitas coisas, mas essa não me parece! Digo isto para o seu bem!"
Engoli em seco. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, que consegui a muito custo controlar. 

Nesse dia, cheguei a casa e enfiei-me na cama vestida. Não quis comer, pela primeira vez não quis falar. A almofada ficou ensopada. Adorava ler, escrever e falar, mesmo que demorasse mais do que os outros, mesmo que fosse alvo de chacota. Punha o dedo no ar nas aulas, pronta a participar, mesmo que isso significasse chamarem-me "cobrinha". Não por ser má, longe disso. Simplesmente porque carregava nos "esses", arrastava-os nas palavras, repetia-os. 
"- Ssssssssstora, sssssserá que isso ssssssignifica..."
Risada total. Todos se riam, menos eu. Continuava com a minha pergunta. Queria saber, queria ir mais longe. Queria fazer perguntas. Era gaga e então? Era feliz, tinha amigos, tocava guitarra, cantava nos Onda Choc (sim, nos Onda Choc!), era boa aluna, tinha confiança em mim.

Mas naquele dia não. Naquele dia era um professor, do alto da sua experiência, que me aconselhava a não seguir o meu sonho, "para o meu bem". Não me lembro de pregar olho naquela noite.

"A gravar!" À voz de ação do câmara gravo o meu pivot. Limpinho. Não gaguejo, não temos de repetir. É um dos meus trabalhos. Faço reportagens, escrevo, faço locuções, sou voz off de um canal de televisão. Faço perguntas, trabalho com palavras. Escritas, ditas. Respiro fundo e a magia acontece. Não gaguejo, não quando tenho de ser "perfeita". Reservo as repetições, as palavras mal ditas e arrastadas para os outros momentos. Para a família, para os amigos, para as aulas, para momentos em que posso ser "eu", sem julgamentos.

Já me disseram que me dava charme. Desatei-me a rir. Não comprei o elogio, mas ri-me. Agora rio-me. Rio-me quando me lembro que tinha de bater na minha perna, da forma mais discreta possível, para desbloquear uma palavra que ficava presa na língua. Mas rio-me principalmente porque hoje, 14 anos depois, sou aquilo que queria ser quando estava sentada na segunda fila daquela aula, a usar a régua e o esquadro. 

Sem comentários:

Enviar um comentário