Ver-te a agonizar com dores na cama daquele hospital, naquela sala tão impessoal, tão fria, tão desconfortável, é uma imagem que nunca esquecerei, e que neste momento me dói mais do que conseguirei, algum dia, expressar. Sinto que falta muito pouco para partires avozinha, e infelizmente não tenho como o evitar, nem como te ajudar. Sou absolutamente impotente perante o ciclo da vida.
Se acreditasse em Deus, dir-te-ia que ele andava a chamar por ti, para que descansasses e espalhasses sobre a humanidade esse teu amor exacerbado, levado sempre ao limite, e vivido da única forma que ele faz sentido: incondicionalmente. Se acreditasse, dir-te-ia que Ele te estava a chamar para que tocasses outras vidas da mesma forma que tocaste as nossas, derramando nelas a bondade, generosidade (e como és generosa!), tolerância, compreensão, respeito e essa tua imensa sabedoria. Mas como sabes eu não sou crente, e assim, o único consolo que me resta é saber que viveste uma vida feliz, sempre junto daqueles que amaste, e que te amam da mesma forma que os amas e amarás.
Escrevo-te agora avó, porque sempre gostaste que eu escrevesse, e apesar de a vida não te ter dado a oportunidade de aprenderes a ler o que escrevi, sempre foste aquela que melhor o entendeu. Lias com o coração não era?
Lembro-me como os teus olhos sorriam'e o teu sorriso brilhava, quando pedias ao avô que te lesse os meus textos e poemas. Lembro-me de me dizeres que tudo o que eu escrevia era "muito bonito". Às vezes não era. Mas para ti, sê-lo-á sempre.
Lembro-me agora de tantas outras coisas. Das bolas de berlim com que adoçaste todos os dias da minha infância, dos teus abraços e beijos "curadores" nas feridas que resultavam das quedas na bicicleta. Se fechar os olhos, ainda ouço a tua voz a chamar por mim, enquanto eu brincava escondida pelos matos e silvados do teu bairro com os meus amigos: "Catarinita, onde estás?"
Lembro-me de que, já adolescente, me querias ensinar a rezar. Se tivesse aprendido, hoje pediria a Deus e aos Santos que te tirassem as dores que estás a sentir, e curassem o teu coraçãozinho e os teus pulmões. Pedir-Lhe-ia que não te deixassem sofrer.
Por essa altura, também me quiseste ensinar a tricotar. E eu também não quis aprender. Disse-te tantas vezes que não gostava de tricot, e ainda assim perdeste meses a fio a tricotar uma colcha para pores no meu enxoval. Naquele enxoval que fizeste durante anos, guardaste numa mala que compraste para mim, e que eu não quis, nem levei.
Lembro-me que no dia em que completei 18 anos estavas muito feliz com o presente que tu e o avô me iam dar. Eu delirei quando vi o livro do código e o cheque para tirar a carta de condução. Também me lembro que passados 4 anos me disseste que os meus pais me iam dar um grande presente. E dessa vez, não me disseste qual era. Logo tu, que não tens segredos, e que por isso, os partilhas, como partilhas as panelas do teu caldo verde, que sabes fazer como ninguém.
Lembro-me de ti orgulhosa no papel de minha madrinha de curso, e das lágrimas que choraste quando colocaste a minha fita de jornalismo na tina da queima.
Viste-me nascer e crescer, e eu tenho de te dizer que cresci muito feliz ao teu lado. E se sou como sou, com todos os meus defeitos e virtudes, sou-o porque também me ensinaste a ser assim.
E como sou assim, só sei amar-te. Hoje e sempre.
Até amanhã, avozinha.
Lá estarei para te mimar, como mereces. Se não conseguires falar comigo, eu ficarei a segurar a tua mão.
Mas escuta avó, eu sei que o local do nosso encontro não é muito bonito, mas se conseguires não faltes, porque à hora marcada eu estarei lá.
Muitos beijos
Tua
Catarinita